
Como não virei arquiteta (nem professora)
Um dia, perguntaram ao Rubem Alves como ele tinha planejado a vida para chegar onde chegou. A resposta: “Eu cheguei onde cheguei porque tudo o que planejei deu errado”. Comigo, até agora, tem sido mais ou menos assim, também.
A primeira vez em que pensei em traduzir foi por volta dos 15 anos, mas a ideia logo se dissolveu no meio de muitas outras. Quando chegou a hora de escolher um curso universitário, eu tinha decidido ser arquiteta. No meio do cursinho, comecei a dar aulas de inglês, como um bico, só pra ter um dinheirinho aqui e ali. Eu ganhava quatro reais por hora-aula e sim, você leu certo. Eu sabia que era pouco, mas não sabia que era tão pouco. Aposto que tinha professor dizendo que eu aviltava o mercado.
Comecei a pegar gosto pelas crianças, depois pelos adolescentes e, na hora de fazer a inscrição para o vestibular, minha mãe e minha diretora, cada uma pendurada numa orelha, me “sugeriram” prestar Letras, além da Arquitetura. Fui muito bem nos dois vestibulares, fechei a primeira fase da FUVEST com nota quase que de Medicina, e aí veio o medo: e se eu tivesse que escolher? Eu não queria ter que escolher, sou péssima para escolher e escolha implica em responsabilidade, eu não queria ter que decidir o resto da vida ali e ainda ter que enfrentar as consequências!
Bem, o destino foi generoso e eu fui muito mal na segunda fase do vestibular para Arquitetura. Adeus, USP, olá, UNESP, vamos ver no que isso dá. Continuei a dar aulas durante a faculdade, e até uns dois anos depois de me formar. Todo início de semestre era uma festa. Ansiedade e animação em níveis extremos. No primeiro semestre em que isso não aconteceu, o segundo semestre de 2008, minha mãe adoeceu e precisou ficar internada. Com meus irmãos morando fora, eu estava praticamente sozinha para cuidar dela, e assim comecei a faltar das aulas.
Foi nessa época, coincidentemente, que o Danilo me convidou para trabalhar com ele. Como conheci o Danilo? Ah, muito divertida, a história. Entrei, em 2006, num grupo de tradutores no Orkut, só para ver como era. Gostei, fui ficando, fui fazendo amizades. Em janeiro de 2007 resolvi ir para São Paulo conhecer esse povo no Encontro de Férias da SBS. Foi quando conheci o Danilo pessoalmente, muito de passagem. Comecei a frequentar todos os encontros de tradutores que eu podia, e isso muitas vezes significou enfrentar 4 horas de ônibus na ida e 4 na volta, no mesmo dia, só para participar de um almoço. Numa dessas viagens, ele se ofereceu para me levar conhecer museus. Eu aceitei e voltei a São Paulo, e em vez de conhecer o MASP, recebi uma oferta de parceria. Cheguei a milímetros de dizer não, porque não sabia se ia dar conta. Olha, faltou tão pouco para eu recusar que até hoje não sei como foi que eu disse sim.
Foi o Danilo quem me ensinou praticamente tudo o que sei hoje. Não só ele me treinou para as áreas em que ele atua, mas também ensinou a usar CAT tools, lidar com clientes e, principalmente, a valorizar meu próprio trabalho. Foram as traduções dele as primeiras que eu revisei, bem como os artigos. Revisei tanto que me tornei melhor revisora que tradutora, coisa que durante um bom tempo me deixou contrariada. Hoje, acho ótimo revisar e é o que me sustenta. Levando em conta que durante muito tempo eu fui a chata que corrigia os outros, hoje recebo para isso e ainda me agradecem, quando faço um bom trabalho. Sim, pode reler o artigo, é certo que você vai encontrar algum defeito. Casa de ferreiro, essas coisas.
Poucas semanas depois de aceitar o convite do Danilo, minha então chefe me encostou na parede e perguntou se eu ia continuar com as aulas ou não. Contra todo o bom senso e os conselhos do Danilo, eu abandonei as aulas. Embora eu não me arrependa, não aconselho essa impulsividade a ninguém, que ela tem um preço alto. A época de professora se encerrou ali. Foi maravilhosa, apesar de eu nunca ter conseguido ganhar dinheiro dando aula, mas sinto como se fosse outra vida, outra Kelli.
Em fevereiro do ano seguinte, fui morar sozinha e logo em seguida a crise acabou nos atingindo com meses de seca. Mas vida de tradutor é assim. Uma vaquinha magra aqui, uma mais gordinha ali, leva tempo para encontrarmos o equilíbrio. Ainda luto para encontrar o meu, como sei que também acontece com muito veterano bem mais cascudo que eu.
Nesses seis anos foram muitas as coisas que eu nunca imaginei que aconteceriam comigo. Palestras no exterior, na USP, em faculdades particulares, artigos não só publicados e republicados no exterior, mas até traduzidos para línguas como o árabe. Conheci tanta gente interessante que perdi a conta, visitei lugares incríveis e até comi caviar (odiei, mas comi), tudo porque não consegui passar no vestibular para Arquitetura.
Kelli Semolini é tradutora e revisora desde 2008, ano em que mudou seu domicílio profissional para a Internet. Cachorreira, apaixonada por dança de salão, gosta de cozinhar e odeia lavar a louça.
Linkedin