Muita gente se interessa em trabalhar com localização hoje. Isso porque existem cada vez mais produtos digitais à disposição e a pandemia acelerou uma transição que já estava em curso no mundo dos aplicativos. Segundo pesquisas de mercado recentes, o coronavírus avançou em 2 a 3 anos o uso de produtos digitais, especialmente em dispositivos móveis, que já ocupam um lugar central em nossas vidas há algum tempo.
Novos hábitos surgiram e mudaram o cenário da Internet, com a demanda por videoconferência, entrega de comida, compras de supermercado, aprendizagem online, streaming de vídeo e telemedicina, entre outros. E a localização é um aspecto cada vez mais importante de acessibilidade para os consumidores. Se antes muitos produtos eram criados apenas em inglês e a localização para outros idiomas não era prioridade ou sequer possibilidade, hoje as empresas encaram a realidade de que mesmo que mais da metade do conteúdo online seja em inglês, o número de falantes de outros idiomas ultrapassa muito o daqueles que têm o inglês como idioma nativo.
Mas se eu estou falando de produtos digitais em outros idiomas, porque chamo isso de localização e não tradução? Quando falo de localização, me refiro à adaptação linguística, cultural e técnica de conteúdo digital para que possa ser usado da forma pretendida na criação do produto, pelos usuários finais, em seus próprios idiomas. Bem esmiuçado, o objetivo da localização é dar ao usuário final a sensação de que o produto foi desenvolvido por pessoas de sua região, para usuários de sua região.
Como tradutora, acho que contexto é sempre importante, então vou aproveitar para contar como vim parar nessa área e porque estou escrevendo sobre isso. Eu sempre tive interesse em tecnologia e comecei a programar no início da adolescência. Fiz vários cursos de informática, mas minha atividade principal era na área de idiomas, como professora de inglês e tradutora. Trabalhei em várias escolas, até ser contratada como tradutora em uma empresa de TI, minha primeira oportunidade na localização. Aí, em 2011, eu saí da empresa e comecei a trabalhar exclusivamente como tradutora autônoma e em 2013 mudei para Curitiba.
Mesmo antes da mudança eu já participava de eventos de tradução, para conhecer outros tradutores e suas práticas. E quando vim para Curitiba, comecei a organizar eventos de troca de conhecimentos, e que acabaram gerando uma grande rede de contatos e beneficiando muitos profissionais como eu, em aprendizado e ajuda mútua. Nesse interim também fiz uma Pós-graduação em Tradução do Inglês ao Português, e, há dois anos, comecei uma graduação em Análise de Sistemas. Por conta desse curso, fiz um estágio em outra empresa de TI, de onde saí ano passado. E nunca parei de trabalhar com localização de sites, aplicativos e jogos.
Assim, tive contato com a localização dos pontos de vista das várias partes interessadas que a compõem: como usuária de produtos digitais, como tradutora em agências de localização ou de forma independente e como tradutora e desenvolvedora em empresas de TI que desenvolvem esses produtos. E é a partir destas experiências que pretendo falar sobre o estado atual da localização no Brasil, sobre os clientes, as agências e os profissionais da localização, além de tentar apontar os principais desafios, as práticas recomendadas e tendências, com recomendações sobre fontes de informação úteis.

Vou começar pelo cliente, que normalmente é a parte que impulsiona os processos de localização, seja por iniciativa da própria empresa ou motivado por terceiros que facilitam esses processos. Idealmente, de forma bem genérica, o processo de localização partiria de uma avaliação das necessidades da empresa, identificando o(s) seu(s) mercado(s)-alvo. A partir dessa avaliação, são definidas metas de negócios e, para atingir essas metas, deve ser feita uma pesquisa de diferenças culturais e implicações da comunicação, que passa também por investigar a concorrência neste(s) mercado(s). A próxima etapa seria então levantar os elementos do produto digital que exigem localização, para planejar os passos envolvidos na tradução (e possível criação de novos elementos, conforme a pesquisa prévia) e seus requisitos de orçamento.
Quando digo “idealmente” é porque na verdade nem todos os clientes seguem esses passos, o que pode causar distorções que afetam o processo de localização e até gerar retrabalho e/ou impacto no orçamento. Um fator recorrente, por exemplo, é a falta de planejamento voltado à preparação da própria empresa antes do processo externo de pesquisa descrito acima. O trabalho com os desenvolvedores deveria ser o primeiro passo para empresas que pretendam operar globalmente, especialmente na realidade atual, em que a internet é uma área primordial de atuação.
E quais questões devem ser levadas em conta pelos desenvolvedores ao criar um produto digital? Por exemplo, pode haver interesse em traduzir o software para idiomas com alfabetos diferentes daquele em que o texto original foi escrito. Se um produto em inglês for traduzido para o japonês ou árabe, a tela terá uma aparência completamente diferente nestes idiomas. O conteúdo e os botões também devem ser movidos de acordo, então o layout da interface do usuário deve permitir alterações. Para que a aparência e operabilidade do produto final seja mais previsível, todos os elementos de origem devem ser preparados (ou criados do zero) para serem traduzíveis. Isso se aplica tanto à parte criativa (o design) quanto à técnica (o código). Tudo isso, se não for planejado antes, pode interferir no trabalho de design do produto e afetar a percepção e interesse do público.

Este processo, que deve ocorrer ainda antes da localização (ou até para possibilitá-la), é o que chamamos de internacionalização. Pois quando se fala de produtos digitais, não são só textos que devem ser adaptados culturalmente, mas também a interface do usuário, incluindo imagens estáticas e multimídia. Além de configurações específicas do código de programação, para tratar questões de concordância em diferentes idiomas, mensagens de erro ou de ajuda, requisitos legais, adaptação de unidades de medida, formatação de números, horas e datas, os métodos de pagamento e moedas. É a internacionalização que garante a compatibilidade das fontes e cumpre os requisitos relativos a procedimentos de segurança de dados aplicáveis em cada região. Os formulários em um site aceitam caracteres especiais para que as pessoas possam inserir a grafia correta de seus nomes? Ou sua data de nascimento no formato usado em sua região? Se estas questões forem incluídas já na criação do software, a extração de conteúdo traduzível é simplificada. E não atentar para isso pode gerar uma série de problemas para nós, os tradutores, gerando retrabalho e atrasando etapas.
Hoje em dia, as metodologias ágeis no desenvolvimento de software dominam o cenário da TI. Isso ajuda a implantar produtos com ainda mais rapidez, mas fazer uma revisão completa de um produto depois que ele já está pronto é muito caro. Além disso, o usuário poderá perceber com muita facilidade quando o produto digital for adaptado posteriormente, e as experiências negativas do usuário costumam levar a avaliações ruins. E com a abundância de produtos no mercado atual, as avaliações e comentários do usuário podem fazer muita diferença na escolha de produtos. Uma localização bem feita pode ajudar o produto a se destacar neste cenário.

E como esse processo todo chega a nós, tradutores? Existem empresas que usam métodos tradicionais, como colocar strings em uma planilha, enviar documentos para tradutores, aguardar que os tradutores confirmem o recebimento, e depois a entrega das strings traduzidas, que serão inseridas manualmente pelos desenvolvedores no código ou sistema de gerenciamento de conteúdo (CMS). Processos como esses consomem muito tempo e energia dos envolvidos: enviar e receber documentos, trocar e-mails, aguardar respostas, cuidar de modificações e atualizar arquivos para garantir que todos tenham a versão mais recente, bem como converter arquivos em formatos específicos para manter o fluxo do trabalho.
Outras empresas adotam sistemas em nuvem, que centralizam o trabalho de tradução e o gerenciamento do processo, às vezes com uma solução própria e interna, contratando seus próprios tradutores de forma permanente ou pontual ou serviços de agências externas. Inclusive há uma busca maior por profissionais que façam a ponte entre os profissionais de desenvolvimento e de localização, para facilitar os processos envolvidos na administração dos vários fluxos de trabalho, chamados de engenheiros de localização, que podem tanto trabalhar em conjunto com gerentes de projeto como assumir o papel deles. Os engenheiros de localização possibilitam a localização contínua, em consonância com as metodologias ágeis já citadas cima e os processos de integração contínua das empresas de TI.
Uma pesquisa de mercado recente aponta que os setores de tecnologia, TI e software, fornecem os maiores volumes de trabalho nas 100 maiores agências de tradução do mundo, e tradução e localização, tradução automática e pós-edição, legendagem e editoração eletrônica e design gráfico, são os serviços mais prestados por elas. Outra pesquisa, voltada às agências brasileiras destaca que, apesar de estas atuarem em muitos setores de mercado diferentes, a maior parte de sua receita (38,5%) vem da terceirização do trabalho de outras agências de tradução (locais e estrangeiras). E muitas agências contratam tradutores independentes para dar conta do volume de trabalho, gerando uma quarteirização do trabalho, que, além de achatar os valores do serviço para estes profissionais, gera camadas a mais de ruído na comunicação e de elementos de risco na execução de um trabalho de boa qualidade.

Essas questões, aliadas à invisibilização do trabalho do tradutor podem tornar este profissional o mais “invisível” de todos, pela marginalização e anonimato de seu trabalho em comparação com outras áreas de tradução, como a editorial. Esta invisibilidade extrema foi detectada pela pesquisa de Thaís Casson em sua tese de mestrado, que coletou informações sobre o trabalho de tradutores contratados para trabalho interno em agências brasileiras. Os relatos em sua tese, que se assemelham a vários que ouvi de colegas (e à minha própria experiência fornecendo serviços como freelancer) declaram que “As agências em geral são criticadas – alguns dos termos repetidos sobre elas são: “mal-pagadoras”, “exploradoras” etc –, e a forma como funciona o trabalho dentro delas é desconhecida (quais os assuntos mais traduzidos, como eles são atribuídos aos tradutores, quais são as etapas do processo de tradução, e até mesmo quais são os preços praticados) … com bastante frequência, contrata[re]m alunos dos cursos de Graduação em Tradução (graduandos e recém-formados). Porém, nos cursos de Tradução, os alunos pouco ou nada sabem sobre a rotina de trabalho dessas empresas, e consequentemente não são preparados para trabalhar com elas, o que cria um vão muito grande entre o que eles aprendem e a prática da tradução como profissão.“.
Além disso, há pouca padronização nos processos de trabalho de localização em suas diferentes dimensões, e isso é refletido nos percalços enfrentados pelos tradutores, mesmo dentro das empresas, mas principalmente para os autônomos. Questões como falta de contexto, uma das principais reclamações de quem traduz, na melhor das hipóteses, resulta em cadeias infindáveis de perguntas e respostas e, na pior das hipóteses, em traduções de baixa qualidade. Ter material de referência é fundamental, mas não se pode esperar seu fornecimento como regra. Há empresas que concedem acesso ao produto final ou ativos de software (como imagens e vídeos) ou que orientam seus desenvolvedores a deixar informações de contexto relevantes, como comentários em arquivos de recursos. E há agências que se responsabilizam por fornecer acesso direto aos gerentes de produto e desenvolvedores para responder perguntas e/ou fornecem glossários e guias de estilo. Mas, de novo, isso não é regra, e é bem comum os tradutores trabalharem “às cegas” e contando apenas com sua experiência para produzir traduções de qualidade.
Outra questão que pode afetar a qualidade da localização é a falta de ferramentas adequadas e/ou treinamento necessário para apoiar seu trabalho. Aproveitar memórias de traduções e listas de terminologias predefinidas, muitas vezes são ações tomadas para manter projetos dentro do orçamento e prazos sob controle, mas nem sempre com a transparência adequada para que o trabalho flua. Na realidade, os processos de localização contêm mesmo muitas “peças móveis”, e a eficácia de todos os envolvidos depende tanto de os membros entenderem seu papel e os objetivos a serem alcançados em cada etapa do projeto quanto de terem acesso ao maior número possível de informações.
E uma dúvida que surge com frequência: tradutor que localiza precisa ser programador? Não necessariamente. A maior parte do conteúdo que chega aos tradutores não depende de entender linguagem de programação, embora às vezes possa conter caracteres que representam variáveis ou comandos e saber um pouco de programação possa ajudar em termos de contexto. Mas as ferramentas de auxílio à tradução (CAT tools), que são as plataformas de trabalho mais comuns na localização, costumam apresentar essas variáveis e comandos em forma de tags (representados por certos conjuntos de caracteres, letras e/ou números) e as boas agências costumam fazer o possível para instar os desenvolvedores a incluir comentários de ajuda ou responder às dúvidas que possam surgir.
Existem mesmo vários desafios, e acho importante apresentá-los, não para desanimar ninguém, mas para que o interesse pela área não seja dirigido apenas pelo aquecimento do mercado e que os profissionais entrem com o pé no chão. Há várias formas de se preparar, principalmente com informações como as deste texto e dos links embutidos nele, mas também de cursos específicos ou relacionados a escrita técnica , artigos e livros. E conhecer as práticas de outros profissionais pode ser muito útil também. E, finalmente, acompanhar os desenvolvimentos da área a partir de outros pontos de vista ajuda a ter uma noção mais abrangente da localização.